A resposta para os estudiosos do direito é sim, porém a questão encontra muito obstáculos nos Tribunais brasileiros pelos seguintes motivos:
Primeiro: A lei brasileira não aborda o assunto. O silêncio legislativo faz com que os operadores do direito, muitas vezes, não saibam lidar com o problema ou não querem enfrenta-lo e, por via de consequência, acabam afastando essa discussão do Poder Judiciário. Nessa seara existe o Projeto de Lei nº. 1365 de 2015.
Segundo: Alguns operadores ainda estão atrasados culturalmente. Muitos ainda não entendem a importância do animal para algumas famílias. Alguns ainda insistem em enxerga-los como “coisas” ou “meros animais”, quando na realidade, em algumas famílias, esses animais são, no bem da verdade, amigos e filhos.
A questão precisa ser enfrentada. Isto porque, em 2015, segundo estatísticas do IBGE existem 52 milhões de cães e 22 milhões dentro das famílias brasileiras, isto é, 44,3% das famílias pátrias tem pelo menos um cachorro, enquanto 17,7% tem pelo menos um gato. Isso sem contar outros mamíferos, outros répteis e outras aves que também ganham nossa estima e amor.
De maneira singela e resumida, este artigo procura trazer algumas ideias sobre o tema do ponto de vista jurídico. Não esgotaremos o assunto, que não é pacífico e bastante extenso.
O que é o animal para o direito brasileiro?
Um bem móvel. Assim como tantos outros (carro, navio, aeronaves), a lei civil confere ao animal o status de bem móvel. Diferentemente, porém, dos outros bens citados entre parênteses, que são reconhecidos como bens móveis propriamente ditos, os animais são semoventes, isto é, são bens móveis que se locomovem por si próprio.
Parece-nos, porém, melhor a definição dada pelo Código Civil da França, segundo o qual os animais têm sentimentos. Assim, enquanto os franceses consideram que os animais têm capacidade de sofrer, de sentir prazer ou felicidade (leia-se: senciência), o Brasil considera os animais como sendo bens que podem, apenas, se locomover por vontade própria.
Breve considerações sobre senciência animal
O termo é novo e de difícil conceptualização nos dicionários brasileiros. Entretanto, resumidamente, significa dizer que o animal é capaz de ser estimulado (negativamente, com dor e sofrimento, ou positivamente, com a felicidade) e, em contrapartida, sentir o resultado do estímulo em sua consciência. Exemplifico: ao se gritar com um cachorro (estimulo negativo), o mesmo se afasta, sente medo, retruca por meio do ataque (esses são alguns resultados ao estimulo).
Em resumo, quer-se afirmar que os animais gozam da capacidade de desfrutar dos estímulos positivos e de sofrer pelos negativos. No entanto, surge um problema: só pode desfrutar “do lado bom da vida” e “sofrer pelo lado ruim dela” aqueles que têm consciência. Seriam, então, os animais detentores de consciência? É comum dizermos que um animal de estimação é “inteligente”, “que ele entende o dono”, “que ele conversa [do seu jeito] com o dono”. Seriam esses sinais de consciência? Fica a reflexão, que muito ultrapassa a minha área de conhecimento: o Direito.
Entretanto, deixo o manifesto de um grupo de neurocientistas que não excluem a possibilidade de os animais gozarem de consciência. Isto porque as estruturas cerebrais dos humanos são equivalentes ao dos outros animais e, daí a conclusão: eles (animais) têm consciência. A matéria sobre o assunto pode ser lida aqui e a íntegra do documento aqui.
Mais do que animais, membros da família.
Pois bem.
Independentemente de terem ou não consciência ou senciência, é preciso se mencionar o seguinte: os animais, hoje, são membros das famílias. As pessoas tratam os animais como se filhos fossem, outros como irmãos ou amigos.
Aliás, esse cenário trouxe impacto na composição das famílias brasileiras: não obstante os números supramencionados no preâmbulo deste artigo, atualmente encontramos diversas famílias com as seguintes combinações:homem ou mulher + animal (sem filhos), homem ou mulher + animal (com filhos), casais + animais (sem filhos) ou, ainda,casais + animais (com filhos).
Chamou-se essa nova composição de família, em que o animal está inserido, de família multiespécies ou famílias interespécies. O vínculo que liga o animal ao homem é a afetividade.
Registre-se que o vínculo que os liga é de natureza afetivo, obviamente. Embora não seja necessário dizer, o vínculo entre ambos não é de direito (como ocorre no casamento), nem de sangue (como ocorre nas relações de parentesco). A afetividade é, sim, elemento suficiente para configurar uma família e, cada vez mais, vem sendo reconhecida no Direito para tanto.
Imaginemos, por exemplo, uma criança que tem na certidão de nascimento o nome de um pai que não a criou, que nunca a visitou, que nunca pagou pensão. Essa criança sempre foi criada pelo padrasto. Ora, o padrasto não é o pai? Claro que é! E o que liga o padrasto à criança? O direito? O sangue? Não, a afetividade.
Da mesma forma ocorre com os animais.
Fato é que após o vínculo se finalizar pelo divórcio (no casamento), pela dissolução (na união estável) ou simplesmente pelo afastamento (em qualquer outro relacionamento), podem surgir questões patrimoniais, ou seja, que mereçam ser discutidas e serem objeto de partilha.
Muitos defendem que o animal deverá entrar na partilha e com o devido respeito, estão enganados. Uma porque os animais não são bens.Duas porque animais não podem ser objeto de partilha (perdoe-me a ironia, mas um ficará com a cabeça e o outro com o resto do corpo?).
Alguns até defendem vendê-los para, posteriormente, partilhar o valor da venda, o que é inconcebível.
Os animais são membros da família e impossíveis de serem partilhados. Assim, independentemente do regime de bens a ser adotado, restará, apenas, a figura da guarda no que tange ao animal a depender da época que o animal foi adotado ou comprado e do regime de convivência (leia-se: regulamentação de visitas):
Situação 1: Se o animal é anterior ao relacionamento, ou seja, não foi adotado/comprado por ambos, não haverá a figura da guarda. Mas se o animal tem afetividade com a parte que não o adotou ou comprou, entendemos ser possível somente a regulamentação de visitas.
Isto porque, não seria justo com o “dono”, que o adotou/comprou o animal antes do relacionamento, ter de dividir o animal após o fim do relacionamento. No mais, estar-se-ia garantindo, ainda, a mantença da afetividade do outro, que não é o “dono”, por meio do regime de convivência.
Situação 2: Se o animal é posterior ao relacionamento, mas foi adotado/comprado por apenas por um dos “donos”. A questão não é de fácil solução. O animal entrou no seio familiar após o relacionamento, portanto, ainda que adotado/comprado por um, será dos dois. E, com isso, fala-se na possibilidade de discutir a guarda e a regulamentação de visitas.
Situação 3: Se o animal é posterior ao relacionamento e foi adotado/comprado por ambos. Aqui é indiscutível: discutir-se-á a guarda e a regulamentação de visitas.
Notas importantes nesse ponto do artigo
Nota 1. Partimos do pressuposto que ambos os “donos” têm afinidade com o animal e desejam tê-lo consigo. Diferente, portanto, a situação do “dono” que não tem afinidade, que maltrata ou não quer o animal. Nessas circunstâncias, independentemente de ter ou não sido a adoção/compra anterior ao relacionamento, não haverá a discussão de guarda e da regulamentação de visitas. Aqui, o animal ficará com o outro.
Nota 2. Caso um dos “donos” tenha comprado o bichinho e não o queira após o término do relacionamento, o outro “dono” deverá indenizá-lo financeiramente pela quantia paga à época da aquisição, caso pretenda ficar com o animal.
Nota 3. Como demonstramos afetividade? Como comprovar a propriedade em juízo? As principais provas admitidas no Poder Judiciário, hoje, para comprovar o relacionamento com os animais são: (i) o nome consignado no documento do veterinário demonstrando quem levava o animal ao veterinário para consultas e vacinas (trata-se de um ponto bastante favorável); (ii) fotos com o animal que demonstrem o relacionamento entre o “dono” e o animal; (iii) nota fiscal de compra; (iv)testemunhas.
Além disso, o juiz deve analisar, para a concessão da guarda, quem tem maior afetividade com relação ao animal, quem tem mais tempo para cuidar do mesmo e o ambiente em que o animal ficará boa parte do tempo.
Quais são as espécies de guarda?
Atualmente, no Direito das Famílias, quando o assunto é guarda decrianças e adolescentes, existem duas: a compartilhada (regra) e aunilateral (exceção). A guarda alternada é vedada porquanto traz abalos e alteram a concepção da criança e do adolescente acerca de rotina e de autoridade. Todavia, em se tratando de animais, existe a guarda compartilhada, a unilateral e a alternada.
1. Guarda compartilhada: É a guarda por meio do qual existe a divisão equitativa de direitos e obrigações sobre o animal. Na prática, significa dizer que ambos os “donos” devem compartilhar todas as decisõesimportantes em torno do animal.
Exemplo 1: o animal precisa de acompanhamento veterinário (é uma questão de grande impacto na vida do animal, porquanto o profissional errado pode trazer malefícios ao ser), portanto, a decisão de escolha do veterinário deverá ser tomada em conjunto pelos “donos”.
Exemplo 2: a alimentação dos animais, a depender da marca do alimento, pode trazer impactos ao desenvolvimento saudável deles, portanto, também deverá ser escolhida em consenso pelos “donos”.
Exemplo 3: o animal precisa passear e, embora isso seja importante para o animal, poderá ser realizado em qualquer ambiente (leia-se: não é uma decisão importante): praça, parque, rua. Não seria preciso, portanto, a princípio, que ambos entrassem em consenso.
Exemplo 4: Castração, cruzamento e venda de filhotes são outros exemplos de condutas que devem ser tomadas em consenso pelos “donos”.
Nessa espécie o convívio entre os “donos” com o animal deve serequilibrado, porém não significa dizer que o animal deva passar 50% do tempo com um e 50% com o outro. Isto porque, o animal continuará a ter uma residência fixa e um “dono” que o deverá representar juntos aos organismos competentes (no veterinário e vigilância sanitária, por exemplo). Para fins de direito, se for preciso consignar em algum documento o local em que reside o animal, apenas um endereço será passado.
Nessa espécie de guarda as visitas são, via de regra, 60% a 40%. Em outras palavras, o animal passa 60% do tempo com o “dono” que o tem em casa e com o outro, que corriqueiramente o visita, deverá passar 40%.
Assim, não é preciso prever dias e horários de visita. O regime de convivência é livre. Normalmente ocorrem visitas todos os finais de semana e alguma vezes ao longo da semana.
2. Guarda unilateral: É a espécie oposta à anterior. Se na primeira as decisões importantes precisam ser tomadas em consenso, nesta espécie o “dono” que detém a guarda unilateral tomará todas as decisões sozinho, sejam elas importantes ou não.
Ao outro “dono”, que não tem a guarda, caberá apenas visitar o animal em dias e horários preestabelecidos. Tecnicamente, aqui, o percentual é 90% do tempo com o “dono” que detém a guarda unilateral e 10% com o outro.
Os donos, poderão, no entanto, estabelecer dias de visitas livres, assim o “dono” que não detém a guarda poderá visitar o animal em horário e dia que bem entender, desde que comunicado o detentor da guarda com antecedência e, além disso, utilizado o bom senso (ex: não visitar o animal nos períodos noturnos, durante a madrugada e etc.).
3. Guarda alternada: É a espécie de guarda em que ambos os “donos” detém o animal por períodos predeterminados. Estabelece-se prazos em que cada um ficará o animal e, durante aquele período, o “dono” responsável tomará todas as decisões sozinho acerca do animal. É umaalternância da guarda unilateral. Ora um tem a guarda unilateral, ora o outro.
Exemplo: O “dono A” passará os primeiros 15 dias do mês com o animal; os outros 15 dias o animal passará com o “dono B”. Durante o período em que o animal estiver com o “dono A”, o “dono B” poderá visitá-lo, porém não tomará nenhuma decisão importante com relação ao animal, a qual será tomada exclusivamente pelo “dono A”.
De outro lado, durante o período em que o animal estiver com o “dono B”, o “dono A” poderá visitá-lo, porém não tomará nenhuma decisão importante com relação ao animal, a qual será tomada exclusivamente pelo “dono B”
Pode se estabelecer, ainda, não em formatos quinzenais (de 15 dias), mas sim em dias pares com um e dias ímpares com outro, 6 meses com um e 6 meses com outro e etc.
Importante: Independentemente da guarda adotada, é preciso se sublinhar um posicionamento dos especialistas veterinários: a) quando houver a alternância de lares, os donos devem tomar as mesmas condutas com relação ao animal (ex: se um não deixa subir no sofá, o outro deverá adotar as mesmas medidas de conduta e educação com o animal (exemplifico: se um não deixa o cachorro subir no sofá, o outro também não poderá deixar); b) o prato de comida e água e a cama devem ser levadas de um lar para o outro, porquanto isso ajuda o animal a se adequar corretamente no ambiente.
Se o outro “dono” do animal não me deixa visitar, nem me entrega o animal durante o meu período de exercício da guarda alternada, posso executar?
Sim.
Se o “dono” que detém a guarda impossibilitar as visitas nos dias e horários marcados, poderá o lesado ingressar no Poder Judiciário para fazer cumprir o acordo (desde que o acordo tenha natureza judicial) e pedir que, a cada hora e dia de descumprimento, seja aplicada multa. O mesmo valerá, por exemplo, se durante o período a que mencionamos na guarda alternada, um não quiser entregar o animal.
Importante: O acordo verbal, por vezes, não é cumprido. Se não existe acordo judicial entre as partes, é recomendável que haja, por meio de uma ação chamada regulamentação de visitas (quando existe litígio) ou homologação de acordo que regulamenta as visitas (quando existe acordo entre as partes).
No mais, é de ressaltar que alguns juízes entendem como sendo possível a as ações supramencionadas, enquanto outros, mais arcaicos, entendem não o ser. É preciso abrir e esperar o pronunciamento do magistrado sobre o assunto.
Pensão alimentícia para cachorro?
A questão não é simples. Aliás, o termo “pensão alimentícia” nem deveria ser o correto. Talvez fosse “pensão canina”. De qualquer forma, em se tratando de crianças e adolescentes, aquele que não detém a guarda tem, de outro lado, o dever de pagar pensão alimentícia. Em se tratando deanimais, defendemos o seguinte:
1. Guarda compartilhada: Se as decisões são partilhadas, os valores também deverão o ser no patamar de 50% para cada um dos cuidadores;
2. Guarda unilateral: Se as decisões são tomadas exclusivamente pelo detentor da guarda, enquanto ao outro caberá o direito de visitas, acreditamos ser necessária a ajuda de custo, já que a consulta com o especialista, a alimentação e outros não são itens baratos; e na
3. Guarda alternada: Se haverá uma alternância de guarda, não haverá rateio de custos. Os custos que o “dono A” tiver com o animal durante a estadia em sua casa serão assumidos única e exclusivamente por ele. O mesmo valerá para o “dono B”.
Considerações finais
Embora seja o mais correto, o presente artigo não se utilizou do termo “tutor”, que é do ponto de vista jurídico é o termo dado à tutela. A tutela não tem equiparação à guarda, cujo o termo correto é “guardião”. Destarte, objetivando evitar conflitos entre “tutor” e “guardião”, “tutela” e “guarda”, preferimos o termo “dono”.
Por fim, percebe-se, pela leitura do texto, que o assunto não é pacífico, muito menos se esgotou no presente artigo, o qual abordou de maneira resumida esse tema que deve ser enfrentado pelos Tribunais brasileiros, pelos operadores do direito e pela sociedade cada vez mais nos dias atuais.